Partilho convosco um texto de uma jovem mulher que tenho o privilégio de conhecer. Um texto enviado a familiares na sequência do caso Mariana Ferrer. Demorou anos a poder ser escrito. Esses anos de silêncio, foram anos de sofrimento, ansiedade, depressão e imagine-se… de culpa. Culpa induzida por quem a devia ter protegido. Uma história demasiado comum a quem sofre abuso. Felizmente, quando uma sobrevivente fala, dá coragem a outras para falarem também. E não há juízes, nem advogados psicopatas, nem famílias coniventes que possam suster esse movimento. 

Os tempos do silêncio e da vergonha, os tempos da ignorância estão a terminar. Isso assusta os agressores e desestabiliza quem os protege. A impunidade está a acabar. A solidariedade, o sentimento de ligação permite que as vítimas se transformem em sobreviventes, que o medo e a raiva dêem lugar à empatia e à compaixão por outras que passaram ou podem vir a passar pelo mesmo. Porque um agressor, raramente, raramente para na primeira vítima.

“Todas as mulheres que conheço já sofreram algum tipo de abuso …

A minha história começa com a minha mãe alertando sobre os “tios” e “primos” proibindo-me de sentar no colo deles, eu, criança, não entendia, ela certamente sabia porquê.

Um primo mais velho tocou-me, esse foi o meu primeiro assédio sexual quando era criança e nem sabia. Apenas tenho flashes do que aconteceu. 

Depois tive meu segundo trauma, uma pessoa importante tenta intimidar-me sexualmente. Eu com 15 anos tinha beijado na boca pela primeira vez. No início não percebia, depois achei que era da minha cabeça, mas o prazer desse homem estava em coagir e constranger … a insistência em me mostrar que estava duro deixou-me com medo, não entendi porquê e hoje agradeço pelo seu prazer sádico não ter ido além disso.

Pedi ajuda, disse à minha avó … “não andes com roupas assim”, “não fiques à vontade”, ”é normal, estás a tornar-te mulher, chamas a atenção “. Eu não queria tornar-me mulher, porque tornar-me mulher estava a doer demais.

Esqueci, o nosso cérebro às vezes prefere apagar certas coisas pra seguirmos em frente.

Da segunda vez que essa mesma pessoa começou a coagir-me mostrando os seus órgãos sexuais novamente e lembrei-me de tudo, doeu duas vezes, porque agora já tinha 18 anos e não aguentei dar a segunda face.

Da primeira vez tentei falar, mas a culpa foi considerada minha, então da segunda vez decidi fugir, pedi ajuda a meu pai, mas afundei-me num abismo, comecei a experimentar aí o sabor da depressão.

Quando eu, mulher, perco toda a minha luz, as pessoas ao meu redor perceberam, mas para maioria das pessoas não foi novidade o que tinha acontecido. Doeu ainda mais. Doeu ver as pessoas que me deviam apoiar, ver culpa nos meu atos, proteger quem F%%$# a minha cabeça

Foi aí que eu percebi que sou forte, tive apoio de quem menos esperava e lutei mas a decepção, o sentimento de injustiça e de perda andaram ao meu lado.

Mas não parou por aí, aos 17 o meu primo assediou-me novamente. Por isso me lembrei de quando era criança. A minha família implora: “não contes a ninguém!” Até hoje querem que eu finja, até hoje eu luto para erguer a minha cabeça com toda essa injustiça.

Eu não confio em homens, os homens não me inspiram confiança, para mim o homem hetero é um perigo, porque não parou por aí… Mas quando tentaram agarrar-me à força, não tive medo de gritar, gritar fez-me bem porque não tinha nada de que ter vergonha, ainda assim doeu

Ser mulher é lutar a vida inteira

Hoje descobri que posso  rodear-me de pessoas em quem posso confiar, sem medo. Mas com tudo o resto, vou ter sempre um pé atrás. As marcas ficam, e tornam-me mais forte. Precisava de desabafar, porque todas as mulher já sofreram algum tipo de abuso.”

Quando este relato foi partilhado, ela descobriu que não era a única, era apenas a primeira da família a quebrar o tabu. A primeira. Por cada vítima que se cala por medo, outras vitimizações vão acontecer. O comportamento de abuso é repetido e reforçado pela impunidade e pela cumplicidade do sistema, do familiar e do judicial.

A justiça psicopata no entanto, que diz que “é melhor absolver cem culpados que prender um inocente”, não se coibiu no caso de Mariana de a culpar. Embora André Aranha tenha mentido, a mentira dele é desculpabilizada e é Mariana quem é transformada em acusada. Não há qualquer acusação contra Mariana, e no entanto, o tribunal desrespeita-a e traumatiza-a ainda mais, a saúde mental dela, o futuro dela, é menos importante que a do suposto agressor. É um tipo muito particular de trauma, quando quem devia proteger-nos é afinal quem nos agride. Em quem poderemos confiar?

Haverá muito a dizer sobre o que a ignorância sobre o trauma retraumatiza a vítima. De como a falta óbvia de informação sobre a forma como o cérebro nos tenta proteger: não reconhecendo, esquecendo, congelando com medo de mais violência, como o texto acima tão bem descreve, leva a conclusões absurdas. Como, que se pergunte a uma vítima porque não se defendeu. E que se imagine que se não houve luta não houve violência.

Todos podemos informar-nos sobre trauma. No caso dos profissionais que trabalham com sobreviventes de abuso é que não deveria sequer ser uma opção não a ter. Somos nós a pagar estes profissionais, eles trabalham para nós, temos o todo o direito de exigir que o façam de forma competente. Sistemas judiciais conscientes sobre trauma são uma necessidade básica para que possa haver uma justiça digna desse nome. Para que o sistema judicial não seja mais uma parte do sistema traumatizante. 

Deixo-vos o link para esta mini-serie baseada em factos reais que mostra o que pode acontecer quando se culpa a vítima.

https://www.netflix.com/pt/title/80153467

Publicado na CapitalMag em 18/11/2020 –  https://capitalmag.pt/2020/11/18/raramente-e-so-uma-justica-psicopata/

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