Como quase todos nós, fui educada na sopinha do crime e castigo.
Na crença de que para suprimir um determinado comportamento, teria que haver uma punição, e que essa levaria a uma alteração desse comportamento. Em alguns casos isso pode até acontecer, embora apenas quando estamos a ver. Nos outros consegue-se que o prevaricador se torne mais hábil a esconder ou camuflar. Exemplo disso é o famoso passivo-agressivo, que tem medo de dizer o que pensa e sente, mas encontra formas indiretas de se vingar fazendo com que os outros se sintam mal sempre mantendo um ar inocente.
Esta crença de que quem faz coisas más é mau, alimenta uma hierarquia de bons e maus, santos e pecadores, uma meritocracia que se foca na extinção do comportamento e nunca na compreensão do mesmo. Enquanto dominados pela nossa própria culpa, resta-nos encontrar outros mais culpados do que nós para podermos respirar de alívio. A culpa do outro parece ser a nossa única redenção.
Cientificamente… e humanamente comportamentos são sintomas. Muitos clássicos da literatura se debruçam sobre isso. E no entanto é mais fácil empatizar com o herói malvado de um livro, do que com o vizinho de cima. Numa cultura que alimenta o mito da bondade e maldade, alguém tem que ser mau e ninguém aceita o papel. Os maiores vilões da história defenderam convictamente as suas boas intenções. Al Capone considerava-se um benfeitor injustiçado da cidade de Chicago.
Para promover mudanças duradouras e profundas na forma como funcionamos como sociedade não é bastante focar nos sintomas. Temos que nos interessar pelas causas. Tanto punição como reparação são um sinal de que não houve prevenção. E a causa da violência é sempre a violência. Há um compreensão cada vez maior dos mecanismo que levam a ela. Maioritariamente têm origem em trauma, sobretudo trauma complexo. Isso faz com que conhecer os mecanismos que nos levam a usar violência como estratégia de sobrevivência seja um acto de justiça social e um acto político essencial.
Quando olho para a imagem do “Polícia bom é policia morto.” que nem sequer sei se é montagem e de qualquer forma não subscrevo, posso usar aquela pessoa como bode expiatório ou perguntar-me que histórias estão por trás. Questionar-me sobre essas histórias, e valorizar o porta-sintomas, é muito mais complexo do que rotulá-lo e arrumá-lo numa prateleira. Porque me leva a ter que questionar a minha visão provavelmente privilegiada do mundo e neste caso dos polícias.
Não sei se aquele jovem em particular realmente escreveu aquela frase, mas sei que há pessoas que a subscrevem e isso quer dizer alguma coisa não só sobre elas. Podem dizer que pessoas assim são perigosas. Provavelmente. O medo leva à zanga, a zanga pode levar à violência e a violência pode ser mortal. Felizmente há um espaço infindo entre punição e contenção. A contenção é essencial, e sempre que possível a reparação. A punição não.
Enquanto nos recusarmos a ver a violência como consequência do medo, estamos em negação dos nosso próprios medos individuais e colectivos. E vamos continuar a punir os que nos mostram onde precisamos mudar enquanto sociedade.
Se fechar o círculo, poderei concluir que um mau polícia é um polícia com medo. Que é importante compreender isto. Que é uma conclusão difícil. É natural ter medo quando se é polícia. É uma profissão de risco. Só adequada para pessoas com uma boa saúde mental e acompanhamento constante. Tornar-se uma figura de autoridade é uma resposta comum a trauma, fácil compreender que se se fez parte de um ciclo de violência se prefira o lugar do agressor ao da vítima. Pessoas traumatizadas facilmente traumatizam outras, e isso é mais grave quanto mais poder têm.
A quem serve pessoas traumatizadas com poder? Aos que lhes concedem autoridade para depois a usarem a seu favor. Não é por acaso que as tropas especiais passam por processos de humilhação e violência. Não é por acaso que os cães de luta são provocados antes das lutas. Quanto mais trauma, mais subserviência ao mais forte e agressão ao mais fraco. São os polícias o problema? A árvore esconde a floresta? Podemos olhar para a floresta? E substituir a punição por contenção e reparação?
Acredito que sim, mas exige que cada um de nós explore a sua própria história, os nossos pontos cegos, conheça a fundo as suas respostas de sobrevivência e as vantagens que tem em acreditar no mito dos bons e maus.
Publicado na CapitalMag em 15/06/2020 – https://capitalmag.pt/2020/06/15/crime-e-castigo/