Quando era criança era rica em dilemas existenciais. Um deles era saber se as pessoas eram boas ou más. Como a grande maioria das crianças ficava chocada com a frequência com que os adultos eram desonestos e cruéis. Podia ver que as pessoas que eu amava, e além disso de quem eu dependia, também eram assim.
A minha pergunta era básica: Será que os meus pais são maus?
Talvez se tivesse nascido numa família mais funcional esta pergunta não fosse tão importante. Mas não nasci, e por isso era essencial para o meu sentido de segurança.
Consegui uma resposta provisória: as pessoas só fazem mal às outras quando não conseguem o que querem sem lhes fazer mal. E depois dediquei uma décadas de vida a explorar o assunto.
Quarenta anos depois, não me parece que a resposta inicial fosse uma má resposta. O que me leva a reflectir porque é que precisei de tantos anos de estudo para acreditar numa conclusão que está acessível a uma criança de 10 anos.
Somos só humanos, somos uma das espécies mais vulneráveis no planeta, queremos sobreviver.
Os nossos cérebros são muito semelhantes aos dos outros mamíferos, têm partes em comum com os répteis. Esses cérebros estão programados para quando vivíamos rodeados de pessoas que conhecíamos e em quem confiávamos, e a períodos curtos de stress seguidos de períodos mais longos de segurança. Perante as ameaças da natureza tínhamos escolhas simples, lutar, fugir ou fingir de morto. Ao obrigar-mo-nos a conviver diariamente com desconhecidos e a nunca “ter tempo”, estamos a pedir-nos mais do que temos para dar. Talvez seja possível gerir todas estas mudanças, mas para isso temos que compreender-nos muito melhor a nós próprios e deixar ir a nossa auto-imagem idealizada e patriarcal de Todo-Poderosos acima da natureza.
Uma parte das nossas escolhas é controlada por nós, mas, quando em stress agudo, esse controlo é entregue ao nosso cérebro réptil e esse é um grande amigo que apenas quer fazer uma coisa: Salvar a nossa pele.
Interessar-me pela questão da origem do mal e da violência não foi original da minha parte, tem sido um tema fundamental na filosofia e na ciência. Mas talvez tenhamos procurado nos sítios errados.
Talvez querer aplicar os conceitos de bondade e maldade ao ser humano seja a parcela errada que implica num erro nos resultados. Quando o resultado dá errado, convém conferir as parcelas.
Se estamos a esperar do ser humano coisas de que ele não é fisiologicamente capaz, isso pode explicar a falta de resultados na resolução dos ciclos de violência. E, nesse caso, enfrentar os nossos limites e descalçar os sapatos de salto alto da superioridade moral pode provar-se útil. Substituir esses sapatos por uns todo o terreno de psico-educação e compaixão leva-nos mais longe e mais rápido. Afinal, o alívio de vermos os outros falhar tem tanto a ver com sabermos que não somos só nós. E vermos os outros falhar “mais do que nós” é por vezes a única forma de sentirmos algum valor.
Em relação a mim, sinto que consegui encontrar alguma paz. Essa paz devo-a ao acesso que tive à tal psico-educação, que, acredito, devia estar ao alcance de todos. A conseguir ao fim de muito tempo compreender em vez de culpar e aceitar e gerir as consequências da minha infância, em vez de me sentir “estragada”. Sobretudo devo-a a aos poucos ir deixando ir a culpa e abraçando a minha vulnerabilidade. Afinal sou só humana.