Mais uma vez, foi entregue na Assembleia da República uma petição para que as crianças que presenciam violência doméstica tenham estatuto de vítimas. É incrível é que seja “mais uma vez”, é incompreensível que não tenha sido aprovado da primeira vez.
Toda a gente tem o direito a segundas oportunidades. Ainda assim, o direito de um progenitor a essa segunda oportunidade, não se sobrepõe ao direito da criança que foi exposta a violência doméstica de ter a oportunidade de viver num ambiente seguro e reparador. Situações em que a criança é forçada a conviver com o agressor são aberrantes.
Ouvir histórias de crianças que vão com um dos progenitores apavoradas é desesperante. Crianças que dizem que em casa desse progenitor não podem chorar também. Saber que são colocadas nesta situação pela lei é incoerente. Saber que o outro progenitor é obrigado a obrigar a criança a ir com o agressor, sob pena de perder a guarda ou ser multado, é um absurdo.
A criança perde tudo, a confiança nos dois, no que agrediu, e no que permite que ele a leve. Não tem como compreender que o que permite, o faz por medo de que ainda seja pior. Que as instituições que definem os direitos e deveres, têm mais poder do que esse progenitor que poderia protegê-la. Para as crianças, os progenitores podem tudo. Por isso sentem-se traídas e abandonadas. O progenitor que quer proteger sabe, mas está manietado pela lei. E é-lhe insuportável. Vai ser preciso muito para que essa criança volte a confiar em alguém.
Tenho escrito progenitor. A grande maioria dos casos de violência doméstica são de homens sobre mulheres. Nas situações de separação ou divórcio as mulheres são quem fica em maior vulnerabilidade económica e social. Há pais negligentes que pedem residência alternada depois de perceberem que, caso contrário, terão que pagar pensão à mãe da criança, e “de mim ela não vê um tostão.” Que vão continuar a ser negligentes quando tiverem a criança com eles. Ao saber de algumas decisões dos tribunais, suspeito que nesses casos, os decisores se sintam mais identificadas com os agressores do que com as vítimas…
Muitos dos agressores têm traços narcisistas. Esse traços tornam-nos hábeis a manipular. São encantadores e sedutores. Seguros de si próprios ao contrário do parceiro abusado que provavelmente sofre de sintomas de stress pós traumático e está debilitado. Há muita informação sobre tudo isto, no entanto, muitos dos profissionais que deviam conhecer, desconhecem.
Cresci com violência doméstica. Não óbvia de estalo na cara e pontapé no rabo. Da outra, da quase invisível. Da que que humilha, degrada e ameaça. Cresci com ameaças de morte. A esconder a cabeça debaixo do travesseiro quando os meus pais discutiam na sala e a tirar a cabeça de lá quando se calavam, porque o silêncio era mais assustador. Com silêncios de cortar à faca em que não se podia respirar. Qualquer gesto, qualquer acção mínima podia despoletar a besta.
Aprendi a ser invisível, a não mostrar emoção, aprendi a acalmar o meu pai. A modular o tom de voz. Aprendi a acalmar-me sozinha. Pedi ajuda, mas o meu pai, pelos vistos, era um cidadão exemplar. Eu fui a má da fita. Não sou uma vítima, para mim as vítimas são as que morreram. Morreram e morrem se não fizermos mais e melhor para evitar. Eu sobrevivi. A um preço. Porque não acaba quando acaba. Quando acaba continua. É assim que o trauma funciona. Continua depois de acabar. O medo continua, a angústia continua, a ansiedade, a desconfiança, a necessidade de agradar e que todos estejam bem (menos o próprio) continua. O flashbacks emocionais continuam.
É isto que acontece às crianças vítimas directas ou secundárias de violência doméstica. O seu cérebro é alterado, danificado, e precisa de muito trabalho informado sobre trauma para poder iniciar um processo de recuperação. Os danos do traumas prolongados não desaparecem por si. Sobretudo quando o cérebro ainda está em desenvolvimento. Não é algo que fique no passado ou se possa simplesmente deixar ir. Uma criança que sofreu trauma na infância e não foi apoiada, vai sentir efeitos ao longo da vida. Um sistema nervoso sempre em alarme. Ter ataques de pânico incompreensíveis à noite, para descobrir que acontecem à hora a que o pai costumava chegar… começar a tremer quando alguém levanta a voz… congelar quando se faz um erro… perder a cabeça quando se presencia violência…
Essa sensação de perigo provoca níveis elevados de inflamação, que é umas das precursoras tanto da depressão como das doenças auto-imunes. Igualmente uma criança que teve que ignorar as suas necessidades e os seus limites para sobreviver tem uma grande hipótese de não saber estabelecer limites seguros para si própria. Os seus sistemas de alarme foram desligados e não reconhece o perigo quando ele se apresenta. São presas fáceis para outros abusadores e frequentemente acabam por se retraumatizar.
Entregar uma criança a um adulto que ela considera ameaçador é um forma grosseira e grave de negligência. Mesmo que ela aprenda a esconder ou controlar o medo, o seu sistema nervoso continua em alarme.
A reação ao perigo tem diferentes fases e gravidade:
- A primeira é a fuga/evitamento, quando a criança expressa não querer estar com o progenitor e tenta negociar. Nesta fase a criança ainda vê um dos progenitores como recurso. Acredita que ele o vai poder proteger do perigo. É o legitimamente espera.
- A segunda é a luta, quando a criança já percebeu que não pode fugir mas ainda assim tenta usar a força que tem para evitar o que a assusta
- A terceira forma é o congelamento, ou “fazer de morto” a criança parece extremamente calma, não reage ativamente ao que a rodeia. A sua forma mais extrema é a catatónia.
- A quarta forma e a mais grave é a cumplicidade, a criança que não conseguiu fugir nem lutar, e que não conseguiu travar o agressor fazendo-se de morta, torna-se cúmplice do mesmo numa última tentativa desesperada de encontrar segurança. Aprende a agrada-lo e a dizer o que quer ouvir. O que ela sente ou quer não é importante. A única coisa que importa é conseguir segurança. A segurança também não é conseguida. Por baixo da faceta criança maravilha há um medo agudo de falhar ou desagradar e ser castigada física ou emocionalmente por isso.
Juízes que dizem que só acreditam nas crianças quando choram, ignoram tudo isto. Juízes de Tribunal de Família têm que ter formação sobre trauma. E alguém tem que garantir que não se identificam com o agressor. Saber as leis não basta.
O estatuto de vítima para as crianças em contexto de violência doméstica já vem tarde. A ciência já provou há muito que o trauma secundário existe e a sua gravidade. Já vem tarde, não vamos atrasar mais. Vamos apoiar os que sofreram retraumatização por um sistema de justiça que não os soube ouvir nem proteger. É responsabilidade de todos os adultos que estas crianças possam passar de vítimas a sobreviventes. E lembrarmo-nos a nós e a eles que ser sobrevivente não é motivo de vergonha, é motivo de orgulho.
Publicado na CapitalMag em 07/08/2020 –https://capitalmag.pt/2020/08/07/sobreviventes/