Sim, isto também é acerca da pandemia, mas só vamos chegar lá no fim.
Tornei-me familiar com o luto há cerca de cinco anos quando o meu filho mais novo morreu algo inesperadamente. Quando digo algo inesperadamente não é uma forma de expressão, eu sabia que havia riscos, e tinha consciência de que o que estava a fazer para ajudar não estava a ser suficiente. As pessoas à minha volta fizeram o que costumamos fazer, invalidaram os meus sentimentos e mostraram-se otimistas. Estavam erradas.
O otimismo é uma coisa boa desde que não se baseie em negação. E a negação surge muitas vezes porque não há uma solução de pacote para uma situação e, para fugir à sensação de incompetência, preferimos negar o problema. É fácil perceber que otimismo não é bem isso…
Sendo uma espécie de “perita de experiência” no luto, tenho-me apercebido do quanto o evitamos – eu também teria evitado se pudesse – e do enorme preço que estamos a pagar por isso.
Emoções e sentimentos reprimidos deixam-nos vazios. No sitio onde eles deviam estar, fica um buraco. Como é a emoção que nos coloca em movimento, temos que preencher esse espaço com algo. E esse algo é o drama. O drama é aquilo que achamos que devíamos sentir, que se faz passar por sentimentos e emoções verdadeiras quando estamos dormentes. O drama tanto pode ser verdadeiramente dramático, como cómico ou indiferente.
Desse drama nascem acções sem sentido, sem alma. Estou a funcionar de um estado de sobrevivência. Consigo sobreviver, mas não me sinto realmente viva. E é claro uma das resposta ao trauma. Neste caso, trauma de perda. Não posso gabar mais o poder das lágrimas, sempre que consegui chorar voltei a sentir-me viva.
Há muito tempo que estamos quase todos a viver em estado de sobrevivência.
As emoções e sentimentos não têm lugar num mundo focado na produção. Emoção e produção não se conjugam tão bem. Não há tempo para sentir. Neste momento de crise fala-se muito de voltar ao normal. Espero bem que não. O normal em que vivemos é bastante patológico.
Não porque estes tempos não sejam os mais abundantes e seguros de sempre no primeiro mundo. Mas porque o preço que pagamos por essa abundância é negar o nosso luto pelo preço que outros pagam por ela.
Mascaramos o nosso luto como luta. A luta é o drama que esconde o luto. O luto é o sentimento verdadeiro. Quando o meu filho morreu, uma das primeiras ligações que senti, pode parecer absurdo, foi com as mães palestinianas. Acho que ninguém sabe como elas o que é passar pela morte de um filho.
Num mundo onde os valores do patriarcado reinam, a luta é glória e o luto é fraqueza. Talvez precisemos de círculos de choro, para exprimir em conjunto os lutos pessoais que se tornaram num enorme avassalador luto colectivo.
O Coronavírus ataca os pulmões, a Amazónia, o pulmão do mundo, arde por nós, na medicina chinesa o pulmão é tristeza e luto mas, também, dignidade e orgulho.
Agora que me tornei familiar e amiga do luto, consigo ver que o meu luto se estende a muito mais do que a morte do meu filho, estende-se à morte e ao sofrimento dos filhos e filhas de outras mães.
É difícil neste momento ter orgulho em ser Humana e também não consigo confiar em quem nos guia. Sem luto ficamos vulneráveis aos basófias deste mundo. Aos psicopatas que alimentam a nossa negação e nos permitem fingir mais um bocadinho que está tudo bem. Que podemos continuar a viver como se nada estivesse a acontecer.
Da aceitação do luto vem uma força que já não é luta. Ao contrário da força guerreira do patriarcado que nos vendem a toda a hora. Uma força que não precisa de se tornar guerreira porque é profundamente pacífica e pacificadora. Ainda estou a aprender. Mas o que sei é que sou mais forte do que antes. Talvez todos tenhamos que aprender a fazer os nossos lutos individuais e colectivos. Juntos. Não é preciso ter medo. O luto é amiguinho. Cheguem-se devagar.