Somos frágeis e morremos no fim. A morte não é esquisita, abraça novos, velhos e assim assim. E embora os mais ricos tenham posses para lhe fazer-lhe fintas, tarde ou cedo chega também.
Qualquer linguagem que nos coloque em luta com a doença e a morte, nos colocará sempre na posição de derrotados no fim. Não sei a quem serve essa linguagem. A mim não.
A linguagem bélica é isso mesmo, vem de uma lógica de ganha/perde. E faz sentido notar que é uma lógica patriarcal. Noutra visão a morte é o que torna a vida possível.
Quíron o centauro, filho de Cronos e da ninfa Filira, era imortal. Ferido por uma seta envenenada pelo sangue da Hidra, a sua ferida era incurável. Tornou-se um curador sem nunca conseguir curar-se a si próprio. E finalmente trocou a sua imortalidade pela de Prometeu, que roubara o fogo aos deuses para o dar aos homens, e com isso ganhou o privilégio de uma morte tranquila.
Há uma boa morte? Quem acompanha os moribundos de perto diz que sim. Mas a morte como o parto, portas de entrada e saída da vida, são janelas para um mistério que nos transcende, não cabem na lógica, por isso mesmo, foram apropriadas por um sistema racional que as privou de ritual e de magia. Roubou-as ao domínio do sagrado. Afastou-nos da possibilidade de uma boa morte. Aquela que não é uma derrota, mas um bom final.
Já não cuidamos dos moribundos, não vestimos os nossos mortos, não os banhamos, não os velamos nas nossas casas. Eles são-nos retirados. Assim como as nossas crias nos foram retiradas no parto durante décadas para serem limpas e desinfectadas, ignorando a natureza selvagem da relação mãe/filho e quão preciosos são os primeiro momentos de vida. A mudança de actuação nestes casos, veio,não porque o que a mãe sente e quer vale, mas porque foi analisado, provado e medido o impacto da separação.
O corpo, a sua inteligência, os seus afectos e ritmos, os seus sinais, só valem quando são validados pelos números. O reino da emoção e do sentimento, tradicionalmente femininos, submetido ao reino da lógica e da precisão, tradicionalmente masculinos.
Por isso não espanta que quando nos confrontamos com o imensurável e o incontrolável não tenhamos recursos. Perdemos contacto com o nosso lado orgânico.
Lembro-me de um momento preciso de minha infância em que disse à minha mãe; “Estou tão feliz que nem me importava de morrer agora.” A minha mãe disse logo o óbvio: ”Que disparate.” Mas não era.
Até onde devo ir para evitar a doença e a morte? A partir de que ponto evita-las me leva a evitar a vida? É uma pergunta curiosa nos tempos que correm, mais profunda do que este momento em si. Muito do que fazemos nas nossas vidas, que é contra nós, que é um assassínio da alma, vem de uma sensação de insegurança e da procura incessante por ela. E cada vez tem menos a ver com segurança afectiva e mais com segurança económica. A qualidade do nosso início e fim de vida já não depende do quanto somos amados, mas do quanto podemos pagar a alguém para substituir quem nos ama.
Se há coisa que me apercebi com o confinamento, foi que o meu ritmo alucinante me estava a impedir de viver. E que, mesmo em confinamento, a produção conseguiu sobrepor-se demasiado frequentemente às minhas necessidades orgânicas, afectivas e emocionais mais básicas.
Talvez me tenham convencido que se me atrevesse a viver, a querer o que quero, a sentir o que sinto, morreria. Eventualmente foi o que ouvi toda a vida, tipo bicho papão. A questão é que isso já foi determinado antes. Para todos nós. A escolha não é se morro, é só se vivo.