Quando ouço falar do chumbo do estatuto de vítima para as crianças que presenciam violência doméstica tenho uma reacção visceral. É também de mim que falam. Da criança que fui. Eu sei o que é ser criança. e também sei o que é ser mãe.
É uma das coisas que fazem falta, ter pessoas que passaram pela experiência e não estão em negação a tomar decisões sobre estes assuntos. a política se não for humana não serve para nada. Legislação sem psico-educação é ignorância criminosa.
Em 12 de Dezembro, mesmo a tempo do Natal, foram chumbado os projetos de lei que previam o estatuto de vítima às crianças que presenciem ou vivam em contexto de violência doméstica, e também o que criava um subsídio de apoio às vítimas obrigadas a abandonar o seu lar. No dia seguinte foi aprovado por unanimidade e passou a apreciação e votação na especialidade o projeto que estabelece como regra a residência alternada dos filhos menores em caso de divórcio ou separação. Decisões políticas, mas serão humanas?
Sabe-se com toda a certeza que os eventos traumáticos vividos na infância, impactam tanto a saúde física como mental ao longo da vida. Afetam o desenvolvimento do cérebro, o sistema imunológico e endócrino, aumentam o risco de doença cardíaca, cancro e doenças auto-imunes e estão na origem da maioria das doenças do foro mental.
Os cérebros de crianças expostas a violência na família assemelha-se ao dos soldados que passaram por experiências de combate. O seu sistema de alarme (amígdala e ínsula anterior) fica hipersensível a estímulos, como os alarmes de carro que disparam com uma rabanada de vento. Quer dizer que estas crianças raramente vão sentir-se seguras. Os seus sistemas nervosos estão programados para fugir, lutar, congelar ou submeter-se perante a mínima possibilidade de perigo. E se nada for feito para as ajudar, o tempo não vai curar, apenas agravar esta situação. Quem sofre um trauma e não tem a ajuda adequada vai inevitavelmente retraumatizar-se.
Este fenómeno, que origina o conhecido Stress Pós Traumático no caso dos soldados, no caso das crianças, pode resultar em Stress Pós Traumático Complexo, uma vez que a situação não é pontual e se prolonga durante os anos de formação do cérebro. Para além disso, no caso de violência doméstica, o/s agressor/es é/são amados pela vítima. São os próprios familiares. Há uma piada negra que sugere que quando as consequências do Stress Pós Traumático Complexo forem integradas no DSM, Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, ele vai passar de um calhamaço a um folheto. Tal é o impacto que as experiência traumáticas de infância têm.
Fico desolada quando vejo que a própria CPCJ não é vista como um recurso pela parte da maioria das mães e pais, mas como um bicho papão. O maior medo que tenho encontrado nas mães com quem trabalho é o de que lhes sejam tirados os filhos. Isso faz com que nem sequer equacionem pedir a ajuda que precisam e à qual têm direito.
E infelizmente não se pode legislar afectos, nem bom senso ou respeito. É bastante mais complexo. A lei pode penalizar, mas não é a lei que vai ensinar um progenitor a gerir as suas emoções ou a ter empatia por um filho. E muitos não a têm. Sem apoio adequado, não são seguros para esses filhos.
É muito mais fácil punir do que apoiar. Punir pode ser legislado e generalizado, apoiar terá sempre que ser individual. Punir atribui toda a responsabilidade ao indivíduo, apoiar reconhece que todo o sistema está envolvido e é responsável. Como diz Jack Shonkoff, diretor do Centro para a Criança em Desenvolvimento da Universidade de Harvard: “O problema é que muitas vezes os políticos querem ajudar as crianças, mas não querem apoiar os adultos. E a ciência diz-nos que não podemos ajudar as crianças sem ajudar os adultos que cuidam delas.” Ou, nas palavras de Estela Renner: “Quando dizemos que é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança, precisamos de uma aldeia para cuidar do adulto que está a cuidar dessa criança.”
Não é possível prender e manter presas todas as pessoas violentas. Não haveria prisões que chegassem. E se apenas punimos, mas não apoiamos, o que terá mudado quando essas pessoas saírem? É essencial compreender as causas e encontrar recursos. A informação está aí basta aceder-lhe.
Dói ler as histórias de mães e pais que são legalmente obrigadas a obrigar os seus filhos a passar tempo com o alguém que é negligente. Dói que tenham que os ouvir ir embora a chorar, que tenham que os consolar na volta, sabendo que têm que voltar a deixá-los ir sob risco de ficarem em incumprimento. Dói que uma mãe ou um pai sejam proibidos por lei de proteger os seus filhos. Filhos esses que deviam ser protegidos por todos.
É muito bonito falar de mães e pais “guerreiros” como se isso fosse uma medalha. Mães e pais não deviam ter de ser guerreiros. As crianças não precisam de guerreiros, precisam de ligação. E os pais guerreiros, cheios de adrenalina não conseguem dar-lhes isso, ligação é oxitocina, que é antagonista da adrenalina. Ter as duas em simultâneo é humanamente impossível. As famílias, mas sobretudo a mãe ou pai que é o vínculo seguro da criança, têm que se sentir em segurança para poderem dar-lhe segurança. Qualquer lei que queira proteger as crianças tem que ter isso em conta.
Vamos parar de colocar as famílias monoparentais em situações impossíveis?